O Maraca e a nossa violência estrutural

foto de Ricardo Azoury: Torcedora do Flamengo comemora, na geral do Maracanã, o título de Campeã Brasileira 1980

foto de Ricardo Azoury: Torcedora do Flamengo comemora, na geral do Maracanã, o título de Campeã Brasileira 1980

Hoje, durante a transmissão do Globo Esporte um jornalista classificou aqueles descontentes com o evento da reabertura do Maracanã de saudosistas. Este seria um daqueles termos que servem pra desqualificar a grande diversidade de motivações que fazem alguém como eu ficar desgostoso com a situação do estádio. O que esta fala teria a ver com a foto acima que passou por mim no Facebook minutos depois?
Quem esteve nas arquibancadas e na geral do Maraca até meados dos anos 1990 pode se lembrar que aquele estádio era o principal espaço de congregação social da cidade. Mais insurgente do que a praia, que além da cada vez menos sutil territorialização, não possui a mesma dimensão de interação dos corpos. Por mais que uns se recusassem a ir de geral com argumentos preconceituosos, por mais que esses preconceitos fossem verbalizados nas canções de torcidas, na hora do gol, abraçava-se quem estivesse do lado, não importava a classe, não importava a cor.
O fechamento da geral foi o primeiro passo para a elitização – ou esterilização – do Maraca. Tanto lá, quanto agora, parte considerável da elite carioca, sempre bem representada pelo governante da vez e pela mídia hegemônica, utilizou o argumento de forças superiores (mandos da divina FIFA) como a justificativa para implementar o mesmo processo segregacionista que se observa em toda a cidade na última década, que vê o preço da terra disparar, o metro ir somente para a Barra, as UPPs criarem estados de exceção nas áreas ocupadas etc.
O argumento de alguns é de que isso é inevitável, é um processo mundial. Na verdade, pode-se dizer que o mesmo aconteceu na Inglaterra. Claro, na Inglaterra de Thatcher, exemplo mor de repressão das classes populares numa democracia europeia. Este modelo nos inspira. Pude assistir ao vivo ao jogo Arsenal VS Bayern pela última Copa dos Campões 2013 no Emirates Stadion. Os “verdadeiros” (ou à moda antiga) torcedores do Arsenal se diluíam nas dezenas de milhares de estranhos: turistas, curiosos, pessoas que ganhavam ingressos distribuídos por empresas etc. Os dois mil torcedores do Bayern, que assistiam ao jogo em pé, cantando, pulando e com tambores, fizeram mais barulho que os sessenta mil do Arsenal durante todo o jogo. Realmente, parecia que para boa parte das pessoas o resultado do jogo era o menos importante. Se aquilo fosse um balé, um show da Beyoncé ou uma corrida de cavalos daria no mesmo. Parece ser essa a lógica que querem importar.
Na própria Globo, defensora dos fortes e opressores nesta contenda, ouvi que o Borussia Dortmund, segundo clube mais rico da Alemanha, tem em seu estádio um setor com cadeiras móveis. Em jogos do campeonato alemão, estas são retiradas para que os torcedores “das antigas”, do povão, possam assistir aos jogos como antigamente, em pé, pulando, cantando, com bandeiras, faixas e bumbos. Trata-se de uma proposta que prima pelo convívio e não pela eliminação violenta do outro. Este é só um exemplo de como soluções que valorizem a cultura local e a diversidade seriam possíveis aqui no Rio de Janeiro.
Mas, voltando à nossa realidade, no caso do novo Maraca (ou seria Wembley?) o que é mais marcante não é o fato de se gastar 1,2 bilhão de reais para fazer um estádio como qualquer outro, demonstrando enorme falta de autenticidade; nem o fato de dá-lo de presente para a iniciativa privada sem alcançar 20% de retorno para o Estado, o que aponta a falta de caráter dos envolvidos; o que mais dói é ver que a nossa sociedade mantém padrões que duram séculos, sob os quais boa parte da nossa elite tem total menosprezo pela população e pela cultura popular. Não importa se o modo de torcer no Maracanã era irreverente, plural e único no mundo, verdadeiro patrimônio cultural da nossa cidade. Não houve a menor preocupação em preservar qualquer resquício. E mesmo se alguém tivesse tido a visionária ideia de tombar o antigo modo de torcer como patrimônio imaterial da humanidade, parece que não importaria. Contra o saudosismo, o autoritarismo vestido de “progresso”. Pois como de costume, a parte interessada da nossa elite arranjaria um jeitinho de burlar leis em prol da manutenção de seu projeto segregacionaista e violento de poder.

Guilherme de Alcantara

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5 respostas para O Maraca e a nossa violência estrutural

  1. André Cruz disse:

    É complicada essa situação e como antigo frequentador do Maracanã entendo sua reclamação. Mas temos que entender outro lado dessa moeda que vai além desse processo que vc chamou de elitização ou esterilização: os clubes cada vez gastam mais o povão não banca isso. O povão não compre camisa oficial, não se torna sócio-torcedor, não compra pay-per-view, não vai pagar um valor mais alto para ver um espetáculo que cada vez fica mais caro. Então amigo, temos que separar as coisas. A paixão do povo pelo futebol é legítima, assim como dos clubes de se estruturarem melhor, pq a herança desse passado com espetáculos baratos para o povão e as más administrações de nossos dirigentes foi a quase falência da maioria dos nossos clubes. Se queremos continuar a ter grandes clubes no Brasil, precisamos virar a página e rumar para uma nova era.

    • Bruno disse:

      Nossos clubes quase faliram por amadorismo administrativo e corrupção! Ponto! Convenhamos que se não desse retorno, não aconteceria.
      E isso nada tem a ver com o fato do Maracanã ter sido reformado com dinheiro do contribuinte e dado de presente à iniciativa privada de forma que possa operar o mesmo de maneira segregadora visando aumentar a margem de lucro que já é grande!
      Isso nada tem a ver com o projeto de cidade sendo construído atualmente e que só foi reproduzido no Maracanã!

    • guilhotinada disse:

      André, acho que, além da nossa posição semi-periférica no mercado da bola, clubes, federações e a Globo (TV’s) tem grande parcela de culpa no desestímulo que as pessoas demonstram com o futebol. Se o Flamengo estivesse colocando uma média de 50 mil no Maraca com ingresso médio de 15 reais nos últimos 5 anos, já seria uma potência internacional. O aumento do preço do ingresso é também a saída mais fácil para gestores incompetentes (alguns corruptos) e que, como muitos políticos, não dão o menor valor pela presença de certa parcela da população no estádio. Acho que a mídia massifica demais de que só existe uma única saída do mercado feroz para todas as situações. E se o projeto é selecionar, nada contra, desde não fosse um estádio público reconstruído com 1 bilhão do dinheiro que muitos dos excluídos também pagam, dados de bandeja para empresas privadas.

  2. Eurico da Rocha disse:

    O Mundo mudou,o Brasil mudou,somos potência Mundial e acabou,bola pra frente,e lembrem-se que na inauguração do Mané Garrincha,em Brasília,houve a maior renda da história do futebol brasileiro,agora vamos juntos,mas temos que estar juntos de olho vivo no movimento,é o olho do dono que engorda o gado.

  3. Juvenal disse:

    Eu sou de BH e vejo a mesma coisa acontecendo aqui com o Mineirão. E tenho certeza que está acontecendo em outras cidades.
    A elitização do futebol está desfacelando as torcidas nos estádios. Cada vez menos vemos a torcida vibrante como antigamente. Querendo ou não, quem mais fazia festa e vibrava o tempo todo era o pessoal da geral, aqueles que não tinham condições ou não queriam ir de arquibancada. Agora quem não tem condição, simplesmente não vai. E ninguém está nem aí.
    O 13º jogador está cada vez mais impotente.
    Hoje, paixão continua, é claro, só que fora do estádio. Nas ruas! Essa é a nossa verdadeira geral!

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